terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

DUAL





Como uma célula que se divide, me parto em duas e cada uma das partes adquire personalidade e vida própria.

São duas em uma, lutando em lados opostos, uma luta inabalável e silenciosa. Crescem, avolumam-se, desgastam-se.

Não consigo juntar meus pedaços. Uma gosma liguenta impede que os dois lados se colem. Um assiste, resignado, a vida passar pela janela, outro pulsa, quer escapar, ganhar espaço, experimentar, virar vapor.

Divino e profano, racional e aventureiro, dual.

Me entrego, alternadamente, a cada um, sem sossego. Me desgasto, sofro. Viajo no lado etéreo, me aprisiono naquele que senta para observar a vida.

Um é a calma, o outro, insanidade. Ganho asas e também pés que não se desprendem do chão.

Quero a calma do entardecer, mas a ciranda mistura as cores...

E essa luta eterna abre feridas, rompe nervos, destroça a paz

E entre calmarias e desassossegos me diluo, me misturo, me espalho, vivendo por viver e sem viver.

Zel suek - 1995

domingo, 7 de fevereiro de 2016

O DERRADEIRO ADEUS



Desmontar a casa é muito mais do que retirar quadros das paredes e encaixotar objetos, é também despertar os sons dos risos, das lágrimas, das palavras benditas. e das malditas.

É, mais uma vez, fazer ecoar as vozes tão amadas que se impregnaram em cada minúsculo espaço. Sons de um passado que está se desfazendo e ao mesmo tempo se intensificando na memória afetiva do meu ser.

Cada objeto embalado guarda sua história e conserva o calor das mãos que os tocaram. Sejam simples canecas, sejam elementos sagrados... todos são passados a limpo. Junto com o pó, a memória dos dias vividos e divididos com aqueles seres que me acompanharam no caminho.

Remexer nas gavetas me faz sentir nua diante do passado resguardado em velhas e extáticas fotografias, mas que ganham vida quando contempladas pelos olhos saudosos de quem esteve presente em cada cena.

Ver as caixas sendo empilhadas é como lacrar relíquias de tempos que já se foram, dias felizes multiplicados e dores divididas.

Uma estrada inteira percorrida ao longo dos anos que se foram e levaram vidas, sonhos, projetos e ocultos desejos.

As paredes nuas prenunciam a chegada de um novo alvorecer que não posso prever se será de sol ou de tormentas...

Os espaços vão ficando vazios, o coração geme em silêncio e agonia.

Ressuscitam-se cenas banais do cotidiano e uma gigantesca onda de saudade me remete ao começo, onde tudo o que tínhamos era uma reserva inesgotável de Fé, Amor pela Divindade e o sonho utópico de viver a plenitude da vida num lugar Sagrado.

Juntos contemplamos as estrelas, sorvemos o cheiro da terra, vimos pirilampos iluminando noites escuras, ouvimos o coaxar dos sapos, as cigarras e a orquestra dos grilos.

Vimos a Lua no céu, erguer-se majestosa por detrás da colina.

Estas são as figuras remotas que ganham força, viço e vida na hora do derradeiro adeus.

Contemplo, pela última vez, o Bosque Sagrado e deposito as primeiras flores da florada das glicíneas no solo onde adormeceram espadas e anéis.

Lágrimas jorram profusas; uma mistura de alívio, tristeza, saudade e de Fim.

Zel Suek para Jocelito Suek (in memoriam)